Temos uma tendência muito forte de levar as coisas para o lado pessoal. Uma ideia postada nas redes sociais, uma piada, um comentário inocente, uma simples palavra, podem atingir alvos que nunca foram almejados. E quando contrariados, parece que o sentimento é ainda mais forte. Se for alguma ideologia, ou seja, um conjunto de preceitos mais ou menos sistematizado para organizar a vida, e ela é contrariada, vixe. Democracia? Liberdade de expressão? Ninguém tem o direito de dizer bobagens e, se tem, eu não sou obrigado a escutá-las, salvo se concordar com elas.
Se a palavra for escrita então, aí o bicho pega, pois a interpretação pode tomar rumos inesperados, já que não se pode contar com nenhum dos nossos outros sentidos, para além da visão, que denote o que o autor pretendeu descrever. Poucos têm, como Patrick Süskind, em seu livro “O Perfume”, o talento de traduzir aromas em palavras por exemplo.
Por que fazemos isso? Desejo irrefreado de preencher um vazio infinito? Tentativa de dar sentido à vida, já que o universo parece nem dar bola para nós? Vaidade? Não importa! Foi para mim que aquela pessoa disse aquilo e se não foi, não faz diferença, como pode ela pensar assim?
A boa notícia (ou não) é que este jeito de “pensar”, de tomar como pessoal algo que nunca nos foi direcionado, pode não ser nossa culpa, mas do elefante em nós. Estudos científicos em economia, microssociologia, primatologia e psicologia cognitiva e social, indicam que somos enganados por nossa própria mente, que toma decisões sem nossa autorização ou nos induz a tomá-las. Papo estranho né? Se nossa mente faz isso, quem é esse “eu” que é enganado? Quem sou “eu”, afinal? Se lhe conforta um pouco, essa dúvida não é apenas sua. Como afirma Timothy D. Wilson, professor de psicologia social da Universidade da Virgínia, somos “estranhos para nós mesmos”.
Ao longo da sua história, a filosofia sempre tentou explicar nossa mente. É conhecida a metáfora de Platão, que a compara com um cocheiro numa carruagem com dois cavalos. E também a de Freud, que a divide em três partes, o ego, o superego e o id. O psicólogo social Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova Iorque, autor de “A Hipótese da Felicidade: encontrando a verdade moderna na sabedoria antiga”, dentre outras obras, também tem uma metáfora interessante. Ele diz que nossa mente pode ser comparada a um ginete montado em um elefante. O ginete seria nossa razão, responsável pelo raciocínio consciente, pelas decisões mais complexas. O elefante seria o nosso irracional, nossos pensamentos automáticos provocados por nossas emoções, desejos e intuição.
Contudo, para Haidt, todo esse aparato irracional, também constitui uma forma de processamento de informações, uma forma de “pensar” e, sem ele, o ginete não daria conta do próprio trabalho, não conseguiria tomar todas as decisões. Realmente, imagine se tivéssemos que raciocinar para tudo o que fazemos no dia a dia. Vamos fazer uma viagem? É o ginete quem planeja o roteiro, o orçamento, o horário de sair. Mas depois que pegamos a estrada, a maioria das nossas ações passa para o modo automático. Nas situações críticas de perigo, por exemplo, o que aconteceria se tivéssemos que parar para pensar: “Será que esta cobra é venenosa? Corro ou não corro dela?”. Nesse caso, o medo entra automaticamente em ação e saímos correndo antes mesmo do ginete perceber o que está acontecendo. É o elefante no comando. Ele se sente preparado para a maioria das questões e age rapidamente, intuitivamente. O ginete é mais lento, precisa pensar um pouco antes de agir. A diferença de tamanho entre os dois dá a noção do quanto é difícil controlar nosso animal.
O problema (ou não) é que o elefante parece controlar a maioria dos nossos comportamentos e muitas vezes faz isso escondido. E o tonto do ginete, quando percebe a situação posta, para não dar o braço a torcer, inventa uma explicação post hoc para o que o elefante acabou de fazer, num jogo mental que se aproxima de uma confabulação. Haidt afirma que, na verdade, é o ginete quem serve ao elefante e isso decorreria do fato de que, no processo evolutivo de formação do ser humano, ele chegou bem mais tarde, provavelmente entre os dois milhões e quarenta mil anos atrás, quando começamos a desenvolver nossa capacidade de linguagem e raciocínio. Contudo, nosso “cérebro não se recompôs para entregar as rédeas a um cocheiro novo e inexperiente. Em vez disso, o ginete (raciocínio baseado na linguagem) evoluiu porque fez algo útil para o elefante”.
Além do elefante exercendo esse enorme controle, também temos tendências quase irresistíveis para fazer as coisas apenas segundo as nossas preferências. Somos tão afetados pelos chamados “vieses cognitivos”, ou seja, erros sistemáticos na forma como nosso cérebro processa as informações, que fica difícil sustentar nosso título de “ser racional”. Daniel Kahneman, psicólogo, ganhou Prêmio Nobel de economia pelos estudos realizados nesta área, que podem ser acessados em sua incrível obra “Rápido e devagar: duas formas de pensar”.
Temos o viés da confirmação, da disponibilidade, da ancoragem, da informação, da atribuição, do status quo, de ajustamento, da expectativa e tantos outros deslizes cognitivos disfarçados de processos racionais que, acompanhados de uma boa racionalização, podem convencer os menos e até os mais avisados. São tantos vieses, que o cientista social Dan Ariely deu título ao seu livro de “Previsivelmente irracional”, destacando nossa quase incapacidade de resistir às nossas tendências.
O viés da confirmação, me parece ser o mais forte de todos. É muito poderosa a tendência que temos de buscar informações que apoiam nossas crenças ao mesmo tempo que, inconscientemente (olha o elefante ai!), descartamos ideias contrárias a elas. E pobre daquele que insistir em nos convencer do contrário. Afinal, se é difícil pensar, mais difícil ainda é repensar. Depois que aceitamos um conceito, passamos a defendê-lo como se fosse algo sagrado, às vezes ofendendo até mesmo familiares e amigos. E depois contamos uma história, justificando tudo o que aconteceu. É o elefante desembestado e o ginete racionalizando o ocorrido!
É fácil notar esse viés nas questões políticas, por exemplo. Nas eleições, muitas vezes escolhemos nossos candidatos com base apenas no discurso que foi ao encontro dos nossos interesses ou na mera indicação de amigos. Mas feita a escolha, se alguém falar alguma coisa contra aquele candidato, mesmo com base em dados concretos, dependendo do dia, comprou briga. Olha o elefante aí! Nos tornamos defensores, verdadeiros advogados da ideia que construímos.
Os pesquisadores Kevin Samler e Robin Hanson, em sua obra “The Elephant in the Brain”, ainda sem tradução para o português, apontam o egoísmo como o coração desse nosso jeito de “pensar”. Segundo os autores, seríamos naturalmente egoístas e o fato de sermos animais competindo por poder, status e sexo, às vezes dispostos a mentir, trapacear, esconder alguns dos nossos motivos para progredir, para atingir nossos objetivos declarados ou ocultos, nos empurraria sempre na direção do próprio interesse e, literalmente, a enxergarmos as coisas de forma totalmente diferente do outro.
É isto: uma palavra, dita ou escrita, um olhar ou outro gesto estranho e nosso elefante pode entrar em ação. Movido pelas emoções, pelos desejos ou pela intuição, aliados a algum viés cognitivo, ele assume o controle e pode fazer estragos. Porém, embora isso possa aliviar nossa culpa, não reduz em nada nossa responsabilidade. Mudar o elefante é muito difícil, pois ele sempre será um animal. Mas podemos fortalecer o ginete. Com boa leitura, senso crítico, refletindo antes de agir, sabendo que o mundo não gira em torno de nós mesmos e sempre duvidar um pouco de si mesmo, parecem ser boas práticas para dar músculos ao ginete. Mas não é fácil, pois cada um tem seu próprio elefante e, tentando parafrasear Pascal, “o elefante conhece caminhos, que o próprio ginete desconhece”.
Ah, você não é assim? Seu elefante está totalmente domesticado? Quero só ver quando eu te contrariar!
[1] Ensaio filosófico, a ser publicado no compêndio da ASLE em Outubro de 2023.
[2] Romeu G. Bicalho. Advogado e Professor de Direito. Doutor em Direito pela PUC-SP; Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra-Portugal; Autor e coautor de obras jurídicas. Fundador e Diretor do ICDE – Instituto Central de Direito e Educação; Membro da ASLE – Academia Saltense de Letras, Cadeira 19, cujo patrono é Olavo Bilac. Contato como o autor pelo e-mail: rgbicalho@me.com
Comments