
“Qual a relação do homem moderno com a natureza?”, perguntou o professor, antes de dispensar a turma para o intervalo entre as aulas.
“Pergunta boba, é óbvio, o homem pertence à natureza, você não acha Isa”. Olhando meio de escanteio para Beto, Isabela tentou fazer um sinal, mas não teve jeito, o professor estava logo atrás deles e ouvira o comentário e, gentilmente, perguntou: “Será mesmo, Beto?”
Opa, foi mal professor, não quis ofender, disse Beto, lembrando, de susto, que na primeira aula o professor havia dito para terem cuidado com as certezas, que elas geralmente ofuscam o conhecimento.
Imagina, não ofendeu não, fique tranquilo. E você Isa, o que pensa a respeito?
Olha professor, não tenho muita ideia não, até porque ainda não estudei o assunto. Mas gosto de pensar que fazemos parte da natureza. Lembro que, quando viajei com meus pais para a Grécia, em Atenas nossa guia nos pediu para olharmos a Acrópole observando como a arquitetura grega buscava a integração com a natureza. Ela fez questão de destacar que os gregos antigos tinham muito respeito pela natureza.
Realmente Isa, a arquitetura grega buscava representar em suas obras a harmonia entre o homem e a natureza, o equilíbrio entre a sociedade e a natureza, observou o professor, enquanto acompanhava os alunos em direção à cantina.
Os gregos antigos tinham uma ideia em torno da qual girava muito da sua filosofia, do seu modo de ver as coisas, continuou o professor. Para eles, todas as coisas, o universo, a natureza em geral, formavam um todo ordenado, uma espécie de grande organismo, onde cada parte tinha o seu lugar e a sua função. Eles chamavam essa ideia de cosmo, que podemos traduzir como harmonia ou ordem. No reino animal, por exemplo, desde o nascimento as criaturas já sabem o que têm que fazer. Um peixe nasce e já sai nadando. As tartaruguinhas marinhas, já saem dos ovos correndo para o mar. O gato já sabe que irá comer o rato e este já sabe que será comido pelo gato, não tem negociação. Um leão já sabe que será o rei da floresta, não é bem da floresta, mas vocês entenderam a ideia. E não só os animais, os fenômenos da natureza também. A chuva irriga e o sol seca a terra, e assim por diante. Na natureza as coisas já vêm programadas. E não adianta você dizer para elas mudarem. Elas são assim, nasceram assim e serão sempre assim, essa era a ideia grega, concluiu o professor. Tentem convencer um gato a comer alpiste para ver se ele come naturalmente.
Minha vó tinha uma gata que comia arroz, interrompeu Beto. Ah, mas essa gata não conta, ela não vivia com os gregos antigos, apontou Isa, disparando alguns risos. Além disso, ela foi domesticada, foi mudada pela sua vó, já não é mais natural, completou o professor.
Posso me sentar com vocês aqui na cantina? Claro professor, responderam os dois alunos, enquanto procuravam lugar e pediam três cafés.
Mas professor, como fica o homem, onde ele se encaixa nessa ideia grega de cosmo?
Então Isa, o bicho homem é realmente complexo. Leva nove meses para ser gestado, demora mais um tempo para começar a andar, depois a falar e vai demorar muito mais para ficar “pronto”, alguns parece que nunca ficam, respondeu o professor rindo. Contudo, para os gregos, como tudo na natureza, o homem também já vinha abastecido dos atributos necessários à vida e a grande missão de cada um era descobrir qual era o seu lugar no universo ou, melhor, qual era o seu lugar na polis. Essa missão trazia um peso muito grande pois, imaginem vocês, se a pessoa estivesse fora do lugar, estaria afetando negativamente todo o cosmo. Por exemplo, uma pessoa que nasceu para ser professor, mas que se tornasse um ferreiro, essa pessoa seria um ferreiro infeliz, ocupando o lugar errado na sociedade; ou alguém que tinha todos os talentos para ser soldado, mas que se ocupasse a função de rei, ele não seria um bom rei, pois nasceu para ser soldado. Uma história que ilustra bem essa ideia cósmica, é a Odisseia, de Homero. Depois da guerra de Tróia, os gregos precisavam voltar para suas casas, para o seu lugar. Na sua jornada de volta, Odisseu, também chamado de Ulisses, enfrentou muitos perigos para voltar para sua ilha Ítaca, onde era rei. Enfrentou ciclopes, a fúria dos mares e ficou preso na ilha da ninfa Calipso por vários anos e, mesmo recebendo todo o carinho e a promessa de amor e vida eternos, Odisseu só pensava em voltar para sua casa para os braços da sua amada Penélope, concluiu o professor.
Imagine você, Beto, preso numa ilha, com lindas mulheres, comida, bebida, roupa lavada, mas, mesmo assim, querendo voltar para casa, brincou Isa, dando risada. Ah sim, fosse eu, ficaria por lá mesmo, respondeu Beto, rindo. Concordo com vocês, não deve ter sido fácil para Odisseu, não imagino o que eu faria no lugar dele, disse o professor, entrando na brincadeira.
Mas esse pensamento era muito forte entre os gregos e embalava a ideia de que as regras para uma boa vida em sociedade deveriam ser extraídas da natureza, retomou o professor. Esse jeito de pensar justificava situações que hoje acharíamos inadmissíveis. O exemplo mais forte é o da escravidão, algo normal entre os gregos antigos e que Aristóteles entendia ser natural pois, como ocorre entre os animais, há aqueles que nasceram para comandar e aqueles que nasceram para obedecer, dizia o grande filósofo. Da mesma forma, ainda segundo Aristóteles, a mulher era inferior ao homem pois, como na natureza, o macho é superior à fêmea e não poderia ser diferente na espécie humana. Por isso a mulher e o escravo não eram considerados cidadãos, não tinha voz na democracia ateniense, não participavam das assembleias na Ágora. E eles tinham que se conformar com esta situação pois, afinal, era esse o seu lugar na sociedade, no cosmo. Tudo isso fundado na premissa de que, se é assim na natureza, pela lógica, entre os humanos não poderia ser diferente. Numa sociedade onde uma ideia como esta é aceita, é muito mais fácil exercer o controle social. Ou seja, era muito mais fácil justificar as desigualdades sociais entre os antigos gregos.
Mas professor, então eu estava certo, o homem pertence à natureza, só não sabe muito bem qual é o seu lugar, disse Beto, estufando o peito como quem acha que matou a charada.
Beto, você realmente concorda com os gregos antigos que existem pessoas superiores, de que o universo é um todo ordenado e que o homem já nasce predestinado à alguma coisa!?, perguntou Isa, meio irritada e com uma cara de desaprovação.
Antes de responder Beto, é bom lembrar que a história não começa e nem termina com os gregos, e a filosofia apenas teve início com eles, prosseguiu o professor. Ao lado das ideias gregas, existiam outras concepções sobre a vida, o universo e tudo mais, pregadas pelas religiões da época, algumas muito anteriores. O Hinduísmo, por exemplo, pregava a existência de uma divisão social com base na ideia de que cada um derivava de determinada parte do corpo dos seus deuses, advindo desta origem os direitos de cada um. Embora proibida por lei desde 1947, essa ideia ainda é culturalmente muito forte, principalmente na Índia onde vigora o sistema de castas.
O diferencial na ideia grega, me parece, é que, ao contrário das religiões que se baseiam numa deidade, um ser intangível, ela era lincada em algo físico, algo que podia ser visto e tocado, que estava em todo lugar, que podia ser analisado com o uso da razão. Sabemos que os gregos também tinham seus deuses, mas seu guia moral era a natureza. Porém, como lhes disse, essa relação com a natureza não garantia só coisas boas, pelo menos aos nossos olhos de hoje. E da mesma forma que, no oriente, a influência do hinduísmo ainda é muito forte, a ideia cósmica grega também pode ser notada na cultura ocidental. Não é muito raro encontrarmos pessoas, grupos, que se julgam superiores, pertencentes a uma “raça superior”. Numa outra perspectiva, há quem pense que nasceu com uma grande missão e passa boa parte da vida tentando atingir algum propósito. Ou, ao contrário, que acham que já descobriram o seu destino, que não têm que mudar em nada. Eu chamo esse último tipo de pessoa de “Gabriela”, sabem, daquela música que diz “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim, Gabriela”. Depois dessa, vinda do professor, ninguém se aguentou e o riso foi geral.
Meus caros alunos, quando se adentra à metafísica, tudo é muito etéreo, depende do ponto de partida e da perspectiva que se adota sobre ele. É por isso que a filosofia, ao contrário das religiões, tenta pautar seus conceitos no conhecimento das coisas observáveis, usando principalmente da a lógica, porém, isso não significa que sempre estará certa, mas que sempre está tentando acertar. Mas, como já falei, a história não se encerra com os gregos. O cosmo grego foi profundamente abalado com as novas descobertas, principalmente a partir do século XIV. Com o conhecimento de que a terra não é o centro de tudo, que o universo não é tão ordenado, estando mais para caótico, a ideia grega do cosmo e todas as ideias metafisicas sobre o homem, sua origem, sua relação com os deuses e a própria existência desses, foram profundamente abaladas. Principalmente no mundo ocidental, com movimentos como o renascentismo e, depois, o iluminismo, é a razão, o pensamento racional, que passa a servir de guia à vida em sociedade. Além disso, é o homem, como espécie, que passa a ser o centro das atenções. Para auxiliar o pensamento racional, além da lógica dos gregos, a observação empírica e a experimentação inauguram um novo jeito de produzir conhecimento, nasce o método científico. Com todas essas mudanças, o homem se vê autorizado a dissecar a natureza. Ao invés de integrar-se a ela, como propunham os gregos, o homem passa a servir-se dela. A natureza passa de sujeito a objeto que pode ser conquistado, estudado, consumido ou simplesmente destruído pelo homem. Se vocês aceitam a ideia de que o homem pertencia à natureza, na idade moderna parece que ele se desnaturaliza.
Nossa, professor, então eu estava errado. Devia ter pensado mais ... disse Beto.
Calma Beto, nem sempre é fácil dizer o que é certo ou errado, principalmente quando não temos todos os dados. Contudo, quando entramos no campo da moral, quando arriscamos ditar padrões de comportamento para a vida em sociedade, orientar como as pessoas devem viver suas vidas, confesso que não sei se existe um certo ou um errado definitivo. A história mostra que esses padrões podem ser temporais e temporários, nem sempre forjados no melhor interesse de todos, com base num conhecimento completo. Por isso, se temos que adotá-los para uma vida em sociedade mais ou menos pacífica, é sempre bom estarmos atentos, analisando, aprendendo com a experiência. Mas, com certeza, Beto, a postura de pensar um pouco mais antes de adotar qualquer posição, parece ser a mais sensata, se queremos acertar mais do que errar na vida.
Mas, professor, o que é a vida? Perguntou Isa, no exato momento em que o sinal tocou, anunciando o final do intervalo. Essa vamos ter que deixar para o próximo café, disse o professor.
Reflexões sobre a natureza, o homem, a vida e tudo mais, num pequeno intervalo![1][2]
Por Romeu G. Bicalho[3]
[1] Ensaio filosófico, publicado no compêndio da ASLE em Outubro de 2022.
[2] Texto elaborado sem o uso de travessões ou aspas na fala dos personagens, num método que poderíamos denominar de “método Saramago”, em homenagem ao grande escritor português.
[3] Advogado. Doutor em Direito pela PUC-SP; Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra; Membro da ASLE – Academia Saltense de Letras, Cadeira 19. Possui curso de extensão pela Universidade LAVAL, Quebec-Canadá. Autor e coautor de obras jurídicas.
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